Antonio Carlos Rocha : A paixão do objeto segundo Clarice

2007 - 1

Vou lhes falar de um texto literário. É A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, livro bastante conhecido na literatura moderna brasileira. Vou seguir o escrito bem de perto, sempre à margem da palavra de G.H., para pôr em relevo a clareza de Clarice sobre o tema de nosso colóquio, a maneira como ela trata o sujeito em sua submissão ao significante, ao nome, à imagem, ao objeto.

Trata-se do relato de uma experiência de encontro com o estranho. Encontro com o horror, com aquilo que a própria Clarice chama “a coisa”. Esse relato, é claro, enquanto texto, não é exterior à própria experiência. É, ele mesmo, a experiência do escrito em que a autora, ao tentar dar conta, no après-coup, daquilo que lhe aconteceu como sujeito, faz emergir aí a dimensão do insondável. Expõe-se ao o impasse de tentar falar, na primeira pessoa, da emergência de um começo que, na verdade, é anterior ao próprio sujeito. Essa contradição, à qual voltaremos, percorre o texto e marca o seu desfecho.

Eu dividi o relato em quatro tempos: a queda, a captura, o crepúsculo e a tentativa de redenção do sujeito. O primeiro tempo é da queda, o encontro com o quarto vazio. Tudo começa, uma certa manhã, quando G.H. decide arrumar o quarto da empregada, que tinha ido embora na véspera. Tratava-se para ela, de certa forma, de se reapossar daquele lugar, onde não entrava havia muito tempo, um lugar sempre fechado, escuro, depósito de todo tipo de coisa. Dirige-se ao quarto, mas ao chegar à porta, o choque, o estranhamento. Onde esperava encontrar, diz, “o cheio e o sujo e o escuro”, encontra “o vazio, o seco e o sol entrando pela janela aberta”. Tinha ido arrumar as “escuridões de sujeira e dos guardados... em vez da penumbra confusa eu esbarrava na visão de um quarto que era um quadrilátero de branca luz”. Ela nunca podia imaginar que “aquela empregada tivesse arrumado o quarto e o tivesse espoliado de sua função de depósito”. Era agora um lugar que tinha “uma ordem calma e vazia. Na minha casa úmida, a criada sem me avisar, abrira um vazio seco, oco... ela acabara de me excluir de minha própria casa”. Literalmente unheimlich. G.H. hesitou, então, à porta, mas pensou: “hoje mesmo aquilo tudo terá que ser modificado, transformado em meu e em mim”. Suspirou de alívio e entrou. Mas, surpresa, o estranho persiste: “apesar de ter entrado no quarto eu parecia ter entrado em nada... Eu não cabia, embaraçada por uma teia de vazios”. 

O que vemos portanto é que tudo se tornou, de repente, muito estranho para G.H. Em vez de um espaço conhecido, homogêneo, especular, com seu conteúdo familiar – trapos, malas velhas, natural extensão do corpo do sujeito –, G.H. se defronta com o vazio. Ali onde ela esperava encontrar o mais íntimo, protegido à sombra e na umidade de seus guardados, ela se encontra com um espaço que não a contém e que imediatamente aparece para ela reduzido a uma abstração geométrica: ela não cabia, diz, nesse “quadrilátero sem um ponto de seu começo nem um ponto de seu fim”. Primeiro momento de sideração do sujeito, que não reencontra o objeto, cai, é deslocado de seu lugar, expulso de sua casa, excluído de suas coisas, daquilo a que pertencia.

O segundo tempo da experiência, que chamei a captura do sujeito, é o insólito, é o encontro com a barata. Já dentro do quarto, G.H. abre a porta de um guarda-roupa. “Como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos espiando sem nos vermos. E então da abertura, moveu-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. Na nudez do quarto uma barata... tão seca que era imemorial...”. Apressou-se em sair logo dali. Mas tropeçou. “Uma possível queda naquele quarto de silêncio constrangeu-me o corpo em nojo profundo...” Ela recuou: é que lá dentro a barata se movera, começou a emergir do fundo. “Eu tinha agora a sensação do irremediável... indignação, nojo... que agora me embriagava... com o desejo... de matar. Há quinze séculos eu não matava... Num só golpe fechei a porta do armário sobre o corpo meio emergido da barata.” “Que fizera eu? – não à barata, mas de mim, se pergunta depois. “Eu fizera de mim isto: eu matara.” Mas vai logo se surpreender: “abri os olhos e vi a metade do corpo da barata para fora da porta... havia prendido sim, a barata, mas deixara-a viva... viva e olhando para mim... Desviei os olhos em repulsa violenta... nunca tinha visto uma barata.” Na verdade, o que G.H. nunca tinha visto era uma barata como puro olhar, olhando para ela: “O que eu via era a vida me olhando”. 

É o segundo tempo, momento de captura, sideração: a emergência do olhar no mundo. O objeto se torna exibicionista e fura a realidade do sujeito, familiarmente constituída de coisas, formas, imagens e nomes. Experiência de ruptura. É o fora do lugar, é o fora do sentido. “Eu não queria continuar a ver”, pensa. “Os regulamentos e as leis, era preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender”. G.H. busca suas amarras. O que ela estava vendo estava escapando da moldura e do enquadramento em que deveriam permanecer, de onde não deveriam sair, para que o olhar pudesse continuar a funcionar e ela pudesse continuar a ver e a se ver. É comovente, compreensível e significativo, portanto, o modo como ela apela imediatamente aí ao simbólico, para se prevenir contra a captura fatal, para não ser totalmente tragada pelo abismo que suspeitava. Pois era a significação e com ela a ordem significante que pareciam postos em questão. “E quando falta toda norma, ou seja, aquilo que produz a incidência do simbólico, é aí que aparece a angústia”, diz Lacan.

Mas era tarde. “Eu já não podia mais me amarrar. A primeira ligação já se tinha partido e eu me despregava da lei, mesmo intuindo que iria entrar no inferno... Abri os olhos e vi em cheio a vastidão do quarto desconhecido... minha entrada nele se fizera enfim... só tinha uma passagem – e estreita – pela barata, que é pura sedução... Havia sucumbido. Terminara, também eu, toda imunda... Corpo neutro de barata. Como a vida, que finalmente não me escapa, pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, meus cabelos, sou cada pedaço infernal de mim...” Na desmontagem do campo especular, é o corpo que se despedaça, abrindo a possibilidade de que cada pedaço possa capturar o sujeito. E é também naturalmente a dimensão do tempo que se dissolve e nela a posição subjetiva: “e nunca propriamente morrerei...”, diz. “Esse silêncio... é acumulado de séculos... é um silêncio de barata que olha... não sei o que uma barata vê (e também não sei o que uma mulher vê)... se seus olhos não me viam sua existência me existia... tudo olha para tudo.” Olhado, fixado, o sujeito se perde num jogo de espelhos sem fim, em que a temporalidade vacila, G.H. fala de séculos e do imemorial. É o espetáculo do mundo que se interrompe: angústia do sujeito diante de seu eclipse, que se anuncia e que desloca seu centro de gravidade. “Tudo vive o outro”, diz ela: “neste deserto as coisas sabem as coisas.” O saber é do inconsciente.

Foi exatamente no começo dos anos 60, quando Lacan estava inventando o seu objeto a, que Clarice veio a produzir esse surpreendente e claro testemunho sobre seu encontro com o estranho, com o objeto. Desse encontro com o insólito, Clarice não se limita apenas a fazer um registro pontual, descritivo. Disso ela produz a saga de uma paixão, “a paixão segundo G.H.”, a ser tomada como experiência de destituição, catarse, purificação. G.H. se submete ao que lhe está acontecendo e vai às últimas conseqüências. Essa experiência de despersonalização é literalmente, para ela, alguma coisa que tem valor positivo, “a grande objetivação de si mesmo, destituição do individual inútil, maior exteriorização a que se chega”. Daí resulta uma análise rigorosa da subversão do sujeito e de seu mundo, que tem muito a nos dizer em nossa reflexão sobre o nome, a imagem e o objeto. Que se trata da questão do sujeito e de sua relação com o significante, isso transparece, logo de cara – como disse no início –, na própria tematização do relato como experiência. Como traduzir, na palavra, o que lhe teria acontecido, isso que justamente tinha vindo furar a palavra e o nome das coisas? O texto é então, todo ele, essa permanente tensão entre uma impossível narração e a reconstituição a posteriori. Pois é nessa própria reconstrução que a experiência propriamente se constitui. Mais do que o relato de uma experiência, tratou-se da experiência de um relato, produzir num escrito a palavra de um sujeito que tenta resgatar, como se ele ali estivesse estado, um antes que, por definição, está perdido na anterioridade do acontecimento. “Remotamente ia depois me entender, sob a memória da memória da memória já perdida de um tempo de dor... a dor vivê-la é nossa paixão.” É só pela invenção, por seu ato, que ela há de produzir, depois, esse impossível acontecimento. “Preciso esquecer como todo mundo. Estou esquecendo... como recriar o que não é descritível?” Por isso, pede: “Esquenta-me com a tua adivinhação de mim, porque não estou me compreendendo. Estou somente amando a barata. E é um amor infernal.” 

Tudo gira, portanto, em torno desse ato desesperado e decidido de C.L. de tentar dar conta da subversão que sua experiência introduziu, experiência de ruptura, de abalo daquilo que os nomes e as imagens organizam para nós. Porque o estranho emerge, justamente quando o objeto sai do quadro da fantasia, essa moldura que proporciona ao sujeito a cena em que está representado e que constitui mundo, realidade para ele. No estranho, essa cena se desfaz, o quadro se esvazia e é desse buraco mesmo que o sujeito é olhado, aspirado. No quarto vazio, sumiram os guardados, sumiu a cena familiar. Sem a cena, é aí que uma barata pode virar a barata imemorial, que vem do real. E que fixa, medusa o sujeito, que não tem mais de onde olhar, ver, dar sentido. Como num pesadelo, a falta falta, desaparece a divisão, é a angústia, o unheimlich. E um olhar que vem de fora, mas de um fora que está dentro. Ele vem daquele ponto que Lacan chama o mais extimo do sujeito. Quando alguma coisa não faz sentido nenhum na realidade objetiva, exterior, o sujeito não vê, aquilo é escotomizado. Já no estranho familiar, o sem sentido tem sentido demais, porque vem de dentro e é sempre o sujeito que está concernido. O objeto se desloca da figura de fundo que a imagem lhe dá e isso altera a luminosidade, o foco de luz que situa o que eu vejo. Desmonta-se a arquitetura das sustentações imaginárias. É o crepúsculo, terceiro tempo do relato.

É aí que emerge a opacidade de onde é o sujeito que passa a ser olhado. Suas identificações não garantem mais nada e emerge o apelo de uma identidade que esburaca o mundo, e que faz retornar o que dele deve estar excluído. “É o imundo que olha, é a barata, é a vida que olha”, diz G.H. Momento de dessubjetivação, em que G.H. diz que está “saindo de seu mundo e entrando no mundo”, num crepúsculo no qual é o opaco que nos olha e não nos reflete. “Por que temo me tornar imunda como a barata? Imunda de quê?” Ela nos surpreende: “Imunda de uma alegria sem redenção, sem a esperança”. 

É um além da esperança, portanto, que aí se inaugura. A esperança está sempre no registro do ideal. Olhando a barata, diz G.H.: “eu havia prendido diante de mim o imundo do mundo... eu perdera as idéias... a barata é de verdade, não é mais uma idéia de barata”. A alegria de que ela fala então é de outra ordem, é a danação de uma alegria, que ela chama de “infernal” e que não se propõe a ser dita ou adjetivada. “A coisa”, diz ela, “terá que se reduzir a ser apenas aquilo que rodeia o intocável da coisa. O nome da coisa é um intervalo para a coisa.” Aquilo com que ela está se encontrando é a ausência de pathos, de atributos. E é uma dura experiência. Diz G.H.: “era-me nojento o contato com essa coisa sem qualidades... repugnante, a coisa que não tem nome nem gosto... tão infernalmente inexpressiva que é o nada. O nada era, no entanto, tão colado a mim que me era... O inexpressivo é diabólico”. 

Ora, o diabólico, como sabemos, é o que se opõe ao simbólico. Se o simbólico junta, pacifica e organiza os nomes e a articulação das coisas, o diabólico separa, impõe o descontínuo, impõe o objeto e faz aparecer o nada de que se sustenta o sujeito. Portanto, essa alegria infernal, esse nada “que me era” desfazem inevitavelmente o primado do significante e com ele o enquadramento imaginário. É a ruptura com toda medida, com toda extensão, consumando definitivamente a subversão de tempo e espaço. Dissolvem-se os limites do dentro e do fora, do antes e do depois. O espaço já tinha perdido sua homogeneidade com o sujeito – ela “não cabia” no branco quadrilátero do quarto. Agora era o tempo, que claramente não situava mais o sujeito. É o tempo do Outro que se impõe. Em vez da duração e da reversibilidade temporal em que habitualmente encenamos nosso teatro imaginário, é a instância de um puro corte sem redenção que se desenha, que se inaugura. É o instante em que, brutalmente, o tempo nada mais é do que o próprio sujeito, e isso sem resgate possível. Mas G.H. diz, na primeira pessoa: “finalmente sucumbi. Era finalmente agora, simplesmente agora, plenamente agora e isso era a maior brutalidade”. É o paradoxo do sujeito que a licença poética de Clarice vem explorando no relato.

Era, então, toda a estética que desmoronava. Não surpreende pois que ela diga em seguida: “Adeus beleza do mundo... o jogo da beleza é uma transmutação contínua...[mas] o que sai do ventre da barata não é transcendentável, o que sai é: hoje”. Lacan dizia que a beleza era o último anteparo contra a morte. E a beleza aqui não pôde mais ser anteparo contra o que sai do ventre da barata. Essa dissolução da estética do mundo tira do sujeito o seu amparo, seus suportes, e o condena naturalmente à danação, a isso que se aproxima talvez do que seria um desejo puro, indestrutível. “Eu nunca mais repousarei”, diz ela. 

Tudo se transformou para G.H., e nada mais será como antes. Toda e qualquer semântica é velha e os nomes não servem mais para definir as coisas e capturar o mundo. Ao contrário, agora são as coisas que a cada vez capturam o sujeito. “De agora em diante eu poderia chamar qualquer coisa pelo nome que inventasse: qualquer nome serviria já que nenhum serviria”. Os nomes e as imagens, portanto, se descolam das coisas. É o próprio sujeito que se descola do nome, não cabe mais no nome, como antes ela não coubera no quarto. “Pouco a pouco havia me transformado na pessoa que tem o meu nome... acabei sendo o meu nome.” Mas agora ela vê que “a vida em mim não tem nome, eu também não tenho nome: esse é o meu nome”. É o imaginário do nome que cai. E isso é o oposto do sem-nome do neurótico, que justamente quer ter um nome único. “Tive que ficar toda exposta e perder todas as minhas malas com suas iniciais gravadas: G.H.” Como sabemos, todo nome nada mais é do que isso, uma inicial gravada numa mala, cujo conteúdo o próprio sujeito desconhece, uma mera letra inscrita em algum lugar. O nome próprio não tem sentido, significância, nem referência, a não ser que um sujeito responda, a cada vez, desse lugar, que se constitui aí mesmo no próprio ato dessa invocação e dessa resposta, nisso que Lacan chamou a operação de , em que o enunciado se iguala a sua significação. 

Portanto, se os nomes perdem sentido, se dissolvem, não é, de modo algum, para que se possa aceder a alguma transparência das coisas, anterior à linguagem. É verdade que G.H. ainda tenta nomear aqui e ali, pontualmente, aquilo que cai da palavra e emerge de sua experiência: matéria viva, matéria-prima, plasma, núcleo, vida, viver, Deus. São referências com que ela tenta desesperadamente reencontrar, a cada vez, um chão, um suporte, diante da ruptura da ordem significante. Mas o que prevalece para Clarice é outra coisa: não há nela nenhuma nostalgia de algum paraíso perdido, de um inefável para o sujeito. Se ela vai evocar um além dos nomes e dos signos, é para melhor ainda se submeter ao significante. Diz ela, pela boca de G.H.: “a barata e eu não estávamos diante de uma lei a que devíamos obediência: nós éramos a própria lei ignorada a que obedecíamos. O pecado renovadamente original é este: tenho que cumprir a minha lei, que ignoro”. Ou seja, recalque renovadamente originário, que vem nos separar definitivamente do objeto. Ela acrescenta: “de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou... de ter uma moral tão isenta que eu mesma não a entenda e me assuste”. É a uma Ética, a ética da Coisa, do objeto, que chega Clarice, ela está para além do belo, do bem e do bom. Um pouco como Antígona. Aliás, ela diz: “a verdadeira tragédia está na inexorabilidade do seu inexpressivo”. Contra todo pathos, é a dimensão mais pura do trágico o que C.L. está construindo na experiência de seu escrito. “Por ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. O grande vazio em mim será o meu lugar de existir”. Experiência de solidão absoluta, ponto de partida de um sujeito.

Mas há o quarto tempo da experiência de G.H. Depois do crepúsculo, a tentativa de redenção. “Não contei tudo, não parara de olhar com grande nojo a massa branca da barata... enquanto tivesse nojo, o mundo me escaparia, e eu me escaparia... o erro básico de viver é ter nojo de uma barata. Chegara o momento de realmente não transcender mais... a redenção deveria ser na própria coisa... seria botar na boca a massa branca da barata.” Até aqui C.L. falava de “meditação visual”: “o que prescinde de palavras, de pensamentos”. Era portanto a prevalência do olhar como objeto pulsional. Mas agora é outro registro que se instala. Agora se trata da boca, de engolir, incorporar a coisa. A pulsão oral emerge como possibilidade de fusão com o objeto. “Então avancei de um passo, avancei mais um pouco, de repente vomitei. Vomitei a exaltação. Depois avancei de novo.” Aí ela se interrompe, fala de um desmaio e comenta mais adiante: “Uma vertigem me fizera perder a conta do tempo, mas sabia que enquanto me ausentara alguma coisa se tinha feito. Tinha medo de sentir na boca aquilo que estava sentindo, perceber vestígios. Só me restava a vaga lembrança de um horror”.

Esse quarto tempo aparece portanto como promessa, como último apelo do sujeito: “ser o mundo”, como antes ela tinha sido, tinha tentado ser: “hoje, agora”. É como uma redenção possível, que G.H. teria de passar pela própria Coisa: “assim me aproximaria do que é real”. Mas quem se aproximaria? No real do objeto, que a pulsão contorna, a única experiência do sujeito é a da barra: “eu não sou”. De qualquer modo, no desespero da despersonalização completa, G.H. tenta fazer de sua dissolução na coisa um encontro do sujeito com a Coisa: ali onde o objeto furou a tessitura do simbólico e da imagem, deixar-se incorporar pelo tecido esgarçado da realidade. G.H. vai às últimas conseqüências, não recua.

Ao que ela chega, entretanto, naturalmente, na reconstrução de C.L., é ao impossível desse reencontro. A emergência da Coisa passa necessariamente pela síncope do sujeito. Como vimos, o que ocorreu na dramatização do texto é que o sujeito desmaia. E é só depois, no encontro a posteriori com os vestígios do que terá acontecido, é só daí que lhe restava “a vaga lembrança do horror”. “Eu não tinha querido saber.” Nenhuma possibilidade portanto para o sujeito de ser contemporâneo de seu encontro com a Coisa. Só lhe restaria sempre “a memória da memória da memória”, como ela diz – de quê? – daquilo que nós chamaríamos de um encontro faltoso. 

Esse quarto tempo, portanto, acaba por se constituir, na verdade, no derradeiro encontro do sujeito com sua destituição. Destituição definitiva, nesse malogro de sua vã e louca tentativa de se resgatar de sua queda e do crepúsculo de seu mundo fundindo-se na coisa, ali onde se perdera o fio de sua existência. Esse é apenas o modo que Clarice encontrou para dramatizar, pôr em relevo o impossível a que estamos submetidos como falasseres. É daí mesmo, desse impossível que volta, que insiste ao longo do texto, é justamente daí que C.L. pode praticamente demonstrar o imaginário de uma possível redenção e fazer surgir, assim, desse impossível sujeito, transparente a seu objeto, fazer surgir daí um lugar. O lugar do único sujeito possível que, sabemos nós, é o sujeito do inconsciente. “A linguagem é o modo como vou buscar e como não acho. Volto com o invisível. Mas o invisível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem... a trajetória aí não é apenas um modo de ir, a trajetória somos nós mesmos. A linguagem é meu esforço humano... a insistência é nosso esforço.” A gente diria que o inconsciente insiste: o real padece do significante. A Coisa só advém aí como resto, é preciso passar pelo Outro. 

E G.H. passa as armas ao Outro: “Existir [ex-sistir] exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto e eis que na mão fraca cabe o mundo...” “Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida... a desistência é uma revelação. Sem mim eis que tudo que não tenho é que é meu... posso deixar de me ser” – m’être, diz Lacan, jogando com a homofonia com maitre. Que revelação é essa senão, quase literalmente, aquela que nós chamamos de des-ser (desêtre)? “Desisto e quanto mais ignoro a senha, mais cumpro o segredo, quanto menos sei, mais a doçura do abismo é minha condição... não estou entendendo o que eu estou dizendo... nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como eu poderia dizer sem que a palavra mentisse por mim?”

É à ética da linguagem e à lógica do significante ao que chega Clarice por ter sabido e podido atravessar e tirar as conseqüências de um encontro com o estranho e seus efeitos de despersonalização. Que isso se tenha produzido, com a licença poética, no escrito, na palavra literária é o que me permitiu seguir de perto o seu percurso e aprender com ela um pouco mais sobre o traçado do inconsciente. 

Obrigado.

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1 Trabalho apresentado no Colóquio “A Operação do significante: o nome, a imagem, o objeto”; em abril de 2006.