Ligia Gomes Víctora [2] : Corpo real, corpo simbólico, corpo imaginário[1]

Quando recebemos alguém para análise, esta pessoa geralmente já vem com queixas sobre seu sofrimento psicológico e, muita vez, físico também. São dores na cabeça, nas costas, no peito, medos, insegurança, tristeza... Enfim, um mal-estar “de corpo e alma”.

A questão é: que corpo é este com que lidamos durante uma análise?

 

Lacan, no seminário O objeto da Psicanálise (1965/66), propôs que o objeto do desejo, chamado por ele de “objeto a”, pudesse ser tomado de 3 maneiras: 1) no Real (enquanto desejo inconsciente, inapreensível); 2) no Simbólico (tudo o que possa suscitar desejo com o discurso e provocar o gozo fálico); e 3) no Imaginário – como os objetos destacáveis do corpo, mas que se mantêm sempre circulando por suas bordas: seio, fezes, e ainda funções como o olhar e a voz, tomadas como objetos.

Seguindo os mesmos passos de Lacan, gostaria de propor três vertentes possíveis para se pensar o corpo:

 

1. Corpo REAL: que inclui o corpo orgânico – ossos, órgãos, etc., mas não se reduz a isto – pois ele só existe à medida que for falado. Conforme Marc Nacht (2000. P.207), “ele não tem existência, a não ser pelas palavras que o descrevem”.

 

2. Corpo SIMBÓLICO: que seria o envelope tecido pela linguagem. É como uma segunda pele, feita por uma rede de significantes.

 

3. Corpo IMAGINÁRIO: a imagem de como o sujeito se vê, e como acredita ser visto pelos outros.

 

Corpo REAL

 

O sujeito nasce com um corpo orgânico que segue uma “bio-lógica”, com um sistema mais ou menos autônomo, no sentido de ser independente da consciência, mas que não fica imune aos processos inconscientes – que irão organizar ou desorganizar esta lógica “bio”. Mas este corpo biológico, que integra o corpo real, não sobrevive por si só, e só ganha vida na medida em que outras instâncias interferem nele. A instância simbólica, ou seja, as palavras advindas dos outros, vêm para animá-lo, no sentido original, de animare, do latim: dotar de vida (animus: espírito, energia, coragem, audácia, vontade, desejo e paixão).

 

Este corpo real pode ser depositário de tudo o que for recalcado da consciência – inclusive o recalcado da família, as coisas mal contadas. Segundo Nacht (ibid. P.208), “este corpo real pode ser identificado como o recalcado do corpo do desejo inconsciente. É um corpo inconsciente que insiste atrás destas representações não faladas”.

 

Corpo SIMBÓLICO

 

O corpo Simbólico vai se formando pela incorporação de significantes, desde as primeiras identificações. Trata-se mesmo de uma “in-corpo-ração”, ou da introdução, no corpo, de significantes dirigidos e/ou associados ao futuro sujeito – desde seu nascimento ou mesmo antes dele nascer – que vão criando um campo simbólico propício ao desenvolvimento de um sujeito. Seria um emaranhado de palavras, tecendo uma rede – que será organizada pelo significante chamado por Lacan de Phallus e que será coroada pelo nome-próprio. Isto vai formar uma unidade de ser: “Eu sou o Fulano de Tal” – o sujeito se identifica pelo nome.

Como é um corpo simbólico, “este corpo falado não escapa às regras da semântica e da sintaxe – faz-se objeto de condensações e deslocamentos” (idem) – e é passível de associações e de interpretação.

 

Corpo IMAGINÁRIO

 

É a instância do imaginário que faz a costura do real com o simbólico. O único acesso possível ao corpo orgânico seria através do imaginário. Uma prova de que o corpo é imaginário são pessoas magérrimas que se acham gordas, bonitas que se acham feias, e vice-versa...

 

O corpo imaginário se forma a partir do olhar do outro – mas também pelas carícias, toques do outro, que vão moldando este corpo, como se fosse de massinha de modelar. Isto se monta, mormente, a partir da fase do espelho.

 

As brincadeiras que se faz intuitivamente com os bebês – “De quem é este pezinho?” Ou – “Vou comer essa barriguinha” – vão também dando limites e criando um corpo imaginário.

 

Neste corpo imaginário, vão sendo feitos furos pelos significantes dos outros. Diz-se em Topologia que os furos são bordas que organizam as superfícies. Nas palavras de Marc Darmon (2004. P.362): “de fato, tudo o que faz borda sobre o corpo pode ser fonte de uma pulsão e corresponde a um objeto, dito pequeno a, particular...”. E é incrível como isso acontece naturalmente. Parece que há um empuxo natural à linguagem e uma predisposição à criação de uma relação com o outro. E é bem sabido que, “uma vez que se entra na linguagem, daí não se sai mais, isso vai se ramificando, um significante reenviando sempre para outro...” (idem).

 

Numa clínica de bebês abandonados com HIV havia um indiozinho de 10 meses. Apático, com sérios problemas de saúde e um histórico de hospitalismo, passava os dias deitado com o olhar perdido. Um dia resolvi lhe dar atenção e comecei a fazer a brincadeira de “comer o pezinho”. Ele se retraiu de início, virou de costas para mim. Como eu insistia, começou a aceitar a brincadeira e, pouco a pouco, a me provocar. E, na semana seguinte, quando fui buscá-lo, ele imediatamente me ofereceu seu pé!

 

O corpo na Psicanálise

 

 E o que é o corpo que se apresenta em uma análise?

 

O corpo falado pelo discurso do analisante “se forma na transferência para com o analista, é uma representação complexa que põe em jogo a relação do sujeito com sua história, seus ancestrais – tomados sempre em uma função de espelho, mais ou menos deformante”. (Nacht, o.c.) Sempre meio enviesado, como o espelho no quadro Las meninas.[3] Um reflexo do olhar e das palavras dos outros, que vão se projetando, e compondo uma imagem, como em uma tela. Logo, o corpo falado em análise é uma construção. Enquanto construção simbólica, este corpo imaginário, projetado na tela do corpo real será objeto de associações e deve ser “escutado”, como um sonho.

 

Exemplos de como as pessoas se referem ao corpo:

Hoje estou com uma dor no vazio!

– Como assim, no vazio?

Lá na minha terra, o vazio é uma parte do boi que se usa para fazer guisado, acho que é aqui (mostra o abdômen).

Na verdade, o vazio ou fraldinha é uma peça de carne bovina usada no sul para o churrasco, logo, sendo a paciente natural da região da campanha, dizer que “é para fazer guisado” pode ser considerado um lapso. De fato, a paciente justifica em seguida, associando com seu vazio existencial.

Um vazio, como na minha vida: às vezes parece que já morri.

 

Outro exemplo:

A minha mãe não podia ter filhos. Tinha os úteros virados.

–  “Os” úteros? Quantos ela tinha?

O que eu falei? Não são dois?

Isto, vindo de uma pessoa com curso superior, pode muito bem ser tomado como uma formação do inconsciente. Um lapsus linguæ, como ficou provado em seguida, quando a paciente entra num estado confusional. Em seguida, faz uma associação com o fato de ter duas mães, uma vez que fora adotada.

 

Ainda conforme Nacht (o.c.): – “A abordagem psicanalítica não permite falar do corpo como de um objeto, muito menos um objeto científico, cujas características e reações podem ser analisadas e classificadas conforme o método científico de observação e experimentação” – e eu acrescentaria: como no discurso médico.

O corpo demonstra aquilo que vai no inconsciente – engorda, emagrece, adoece, faz úlceras, tumores... E também – felizmente – às vezes, se cura.

Assim como a pele revela publicamente aquilo que não é dito. Ela enrubesce, empalidece, coça, sua, explode em espinhas, furúnculos, como vulcões a liberar o stress. Fica literalmente “na cara” a vergonha, o embaraço, o medo, etc... É o órgão de contato com o outro por excelência, logo é o que mais se presta para mostrar e demonstrar o que lhe vai “por dentro”. Agora, vamos ver que na verdade o corpo não tem um dentro – nem um fora.

 

O cross-cap de Lacan

 

Uma abordagem de Lacan sobre o corpo foi com o plano projetivo. Esta figura foi apresentada por Lacan (1961-62) no seminário A identificação (Lição 20 – 16/05/1962). Vejam (figura 1) que ele tem estas linhas imaginárias em forma de infinito, que representam que se pode passar de um lado – aparentemente interno – ao outro – aparentemente externo sem cortes. Isso justifica esta figuração do corpo, onde o interior é um contínuo com o exterior.

 

Figura 1: esquema do cross-cap de Lacan (1)

 

 

 

 

Lacan (idem) apresenta este desenho (figura 1) e diz: – “Seu verdadeiro nome é plano projetivo da teoria das superfícies de Riemann. Chamarei, contudo de cross-cap”.

E é verdade. O cross-cap de Lacan, na verdade, é um plano projetivo da topologia, uma variedade do espaço-tempo que tem quatro dimensões (onde a quarta é o tempo), projetado em duas dimensões (D2), ou seja, no plano. O próprio Lacan (idem) diz, na sequência: – “Para imaginar o que é esta esfera encapsulada é preciso pensar em pelo menos quatro dimensões”.

 

Figura 2: o plano projetivo real.

 

 

Conhecido por RP2real plan aplicado a um plano de duas dimensões (D2) – é o conjunto de todas as retas que passam pela origem da circunferência. Isso faz com que a superfície toda se adentre nela mesma, tornando-se, assim, uma superfície unilátera – de um só lado – onde o aparente lado de fora está em continuidade com o falso lado de dentro (pois na verdade é uma coisa só).

 

Porém – e sempre há um porém... O que acontece quando uma variedade unilátera (VED(x>3) ) é projetada no espaço D3 ou no plano D2? Ela perde pontos – ou seja, onde antes eram dois ou mais pontos agora será um só. As variedades uniláteras não podem ser imersas em dimensões menores sem sofrer perdas... Vários pontos coincidem em um só, e ela perde sua propriedade de unilateralidade.

 

Nota: em matemática, uma variedade é uma generalização da ideia de superfície. Há vários tipos de variedades, de acordo com as propriedades que possuem. As variedades são de interesse no estudo da geometria e da topologia, e as mais usuais são as variedades topológicas (esfera, toro, garrafa de Klein, banda de Möbius, etc...). Na psicanálise, trabalhamos as classificações diagnósticas conhecidas por “estruturas” (neurose, psicose, perversão) como se fossem variedades – generalizações dentro das doenças mentais.

 

O cross-cap de Lacan lembra o esquema do “saco” que Freud apresentou em 1923 e depois novamente em 1932. Vejam que tem um lado de fora, em contato com o “mundo externo”, e outro lado de dentro – uma parte pré-consciente e outra parte inconsciente. O indivíduo freudiano tinha o interior e o exterior bem definidos.

 

Figura 3: esquemas de Freud

 

 

 

Só que a proposta de Lacan não tem dentro e fora como a de Freud... Ele é unilátero e não possui bordos. O plano-projetivo plano e esférico são exemplos de imersões de variedades no plano R2 (de duas dimensões).

 

Figura 4: esquema do cross-cap de Lacan (2).

 

 

Conforme Vandermersch (2008): “Esta forma aparentemente homogênea é, de fato, um composé heterogêneo do sujeito e do objeto. Quando um significante faz corte nesta forma, o sujeito é o produto da operação. O objeto, seu resto, a moldura despercebida da realidade do sujeito”.

 

Com este esquema misterioso, puramente imaginário, Lacan representa em uma superfície única a junção do sujeito com seu desejo. Para se compreender melhor este plano-projetivo de Lacan, imaginem uma projeção de uma esfera no plano: vira apenas um círculo! Da mesma forma, um plano-projetivo projetado no plano aparece com sua autointerseção simplificada como uma linha sinuosa culminando em um ponto limite, onde Lacan localizou o Fi (Φ) – letra grega que representa o significante Phallus – ponto que tem uma função estrutural (idem. Lição 26 – 27/06/1962), e que organiza toda a superfície em torno dele.

 

Por carregar o Fi, este círculo também é portador do objeto do desejo. Lacan diz que “o Falo faz o buraco e coloca o objeto a lá dentro” (idem). O que acontece quando os significantes do outro começam a “cortar” este corpo? Ele vai se transformar em outras variedades, lembrando que toda borda pode ser o início de uma pulsão.

Lacan começa a fazer o mesmo exercício que fizera em relação ao toro e à banda de Möbius: cortar e cortar o plano projetivo para ver se consegue uma imagem melhor para a estrutura do fantasma. A questão é: como separar o sujeito de seu objeto de desejo?

 

O primeiro corte – o corte simples – abre uma borda na superfície e a transforma em uma variedade homeomorfa ao verdadeiro cross-cap dos topólogos.

 

Figura 5: esquema do corte simples no plano-projetivo.

 

 

Figura 6: o cross-cap dos topólogos.

 

 

 

Já o corte mœbiano, separaria a superfície em duas partes. Lembrando que são cortes virtuais (se fizermos na construção em papel ou de tecido não vai dar certo).

 

Figura 7: esquema do corte mœbiano ou em oito-interior no plano-projetivo.

 

 

 

Lacan (idem) usou este corte para representar o corte do fantasma. Deste corte, resultariam:

1. Uma banda de Möbius (que é o próprio corte), equivalente ao Sujeito;

2. Todo o resto do tecido, inclusive o ponto central Fi, que seria o objeto a.

 

Esta é a operação que permite ilustrar a separação do Sujeito e do desejo, ou seja, o fantasma ($a). O operador em forma de losango (◊) representa o corte do significante.

 

Figura 8: o corte do fantasma.

 

 

Lacan geralmente trata o fantasma como uma função imaginária. Esta propriedade de desmaterialização do fantasma, nas palavras de Jean-Jacques Tyszler (2014, p.16), o torna automaticamente abstrato. Além disso, ao utilizar modelos topológicos no lugar de exemplos clínicos, Lacan, na visão de muitos, em vez de facilitar, cria mais um problema, o de decifração de enigmas... Ao nomear como “objetos” o seio (representante da pulsão oral) e as fezes (pulsão anal) – estes têm uma materialidade física, digamos. Mas e os outros ditos objetos, designados por Lacan: a voz e o olhar? Qual sua materialidade? Não encontram representação no corpo, são puramente funções.

 

Para encerrar, deixo uma citação de um belo texto de Marc Nacht (o.c., p.210): [4]

 

O que é o corpo para a psicanálise? A concha mítica evocada por Platão está, talvez, mais próxima disto que um cadáver retalhado sabiamente e quase amorosamente desenhado por Vésale. [5] Mas há um caractere comum a cada uma destas representações por mais distantes que elas sejam uma da outra: todas duas são marcadas pelo corte como se o fio que separa, tesoura dos deuses ou escalpo do anatomista, fosse disso o traço significativo.

O que é senão o corpo do desejo liberado da morte, que era seu domicílio secreto?

Que, depois de ter invertido a demanda e se dado conta da alteridade que o funda, vive do encontro disto que acompanha o outro e de palavras. É, então, um corpo desejante, livre de seus males.

 

 

Bibliografia 

 

Darmon, Marc. Essais sur la Topologie Lacanienne. Éditions de l’Association Lacaniènne Internationale. Paris, 2004.

 

Freud, Sigmund. Obras completas. Editora Imago. 1980.

1923. O ego e o id.

1932. Conferência XXXI.

 

Lacan, Jacques-Marie. Obras completas. Site : www.gaogoa.free.fr. Consultado dia: 04/01/2016.

1961/62. Seminário L’identification.

1965/66. Seminário L’ objet de la Psychanalyse.

 

Nacht, Marc. 2000. Corps du désir. In: Le corps a ses raisons. Atas do colóquio. Ed. Association Psychanalyse et Médecine. Paris, 2000.

 

Tyszler, Jean-jacques. 2014. O fantasma na clínica psicanalítica. Trad. Letícia P. Fonseca. Ed. Association Lacanienne Internationale. Recife, 2014.

Vandermersch, Bernard. 2008. Le cross cap de Lacan ou "asphère". In : Dossier Topologie.

Site : www.freud-lacan.free.fr . Consultado dia : 31/01/2010.

Wikipedia. Site : www.wikipedia.com. Consultado dia: 04/01/2016.




[1] Transcrição da exposição no Congresso Internacional da APPOA - Corpo: ficção, saber, verdade (novembro/2015).

[2] Psicanalista. Membro da ALI (Association Lacanienne Internationale). Membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Responsável pelos seminários e oficinas de topologia na APPOA. E-mail: ligia@victora.com.br

[3] O quadro Las Meninas, de Velázquez (1656) medindo 318×276 cm, encontra-se no Museu do Prado, Madrid.

[4] Tradução da autora.

[5] Anatomista francês do século XVI.