Fatima Beltrao Fleig : A insatisfação é um fato de estrutura

Podemos afirmar que a insatisfação é um patrimônio exclusivo da histeria ou também podemos pensar que a insatisfação, como um fato de estrutura, também está presente nas demais formas de neurose?

Para abordar essa questão, ocorreu-me retomar o sonho da Bela açougueira, trabalhado por Freud em A interpretação dos sonhos, no capítulo dedicado à “Deformação onírica”, assim como retomar a análise feita por Lacan, a respeito do mesmo sonho, nos Escritos, em “A direção do tratamento”. De Lacan podemos destacar, de saída, sua indicação de que o desejo, presente nesse sonho, refere-se ao desejo de desejo insatisfeito, próprio da estrutura histérica.

Tomando o caso clínico trazido por Freud, podemos ler, tanto na posição discursiva da paciente, quanto na própria posição discursiva de Freud, os elementos que constituem essa relação de transferência, cuja peculiaridade do fantasma, que ali está em cena, marca de forma singular o desdobramento da estrutura psíquica da analisante e o destino dessa análise. Freud, tal como um tecelão em seu tear, enlaça ponto por ponto, e esse enlace leva à construção do ponto seguinte, estabelecendo o que podemos chamar de o texto do inconsciente atualizado pela relação transferencial. A própria maneira de Freud construir o relato já nos fornece um indício de que o movimento transferencial é, em si mesmo, o desdobramento da estrutura que se manifesta em seu esplendor. Aquilo que é recortado por Freud nos possibilita reconhecer os movimentos da demanda, da reivindicação e do destronamento do mestre. Freud é o primeiro a reconhecer que as críticas, que lhe são endereçadas por seus pacientes histéricos, são muito mais contundentes e muito mais inclementes do que aquelas que ele receberia de qualquer colega. Sua paciente, por exemplo, vai direto ao ponto: “O senhor diz que o sonho é sempre um desejo realizado, cumprido. Agora vou contar um sonho cujo conteúdo é o contrário ... De que maneira o senhor pode condizê-lo com sua teoria?”

Freud não recusa a objeção enunciada pela analisante e, após ter ouvido o relato do sonho, diz: “À primeira vista, o sonho parece racional e coerente e aparenta o contrário de um cumprimento de desejo”; entretanto, pergunta: “de que material nasceu esse sonho? Só posso lhe dizer alguma coisa se trabalharmos o sonho” (para o quê encontra a aquiescência de sua

paciente). E, eis o sonho: “Quero dar um jantar, uma refeição, porém não tenho em minha despensa senão um pouco de salmão defumado. Disponho-me a ir comprar, porém lembro que é domingo à tarde, todos os armazéns estão fechados, pretendo chamar, por telefone, alguns fornecedores, porém o telefone está estragado, assim devo renunciar ao desejo de dar esse jantar.” E, no que se segue, entre as associações que traz, a paciente diz estar muito enamoradade seu marido e de que pediu discretamente a este para não lhe oferecer caviar, apesar de, há algum tempo, nutrir a vontade de comer todos os dias um pouco de caviar antes do almoço. A essa altura, Freud pergunta sobre o que isso quer dizer e, também, para que ela precisa de um desejo não realizado? Mais adiante retornaremos a essas perguntas lançadas por Freud.

Nesse sonho também se encontra uma amiga, para quem seria oferecido o jantar e cujo motivo, aparentemente mais óbvio no sonho, era o de não lhe oferecer um jantar por não querer dar-lhe de comer, pois seria uma maneira de não contribuir para que aquela ficasse mais atraente aos olhos de seu marido, pois a amiga, magra, poderia engordar e, assim, agradar mais ao

voluptuoso açougueiro. E a esse respeito, Lacan nos lembra que tem algo aí do desejo desse marido em relação à outra mulher que mereceria ser indagado.

Mas, Freud continua perguntando pelo por quê do jantar não poder ser oferecido, e assinala um ponto discreto do sonho: “Mas nada ficou esclarecido a respeito do salmão defumado, que aparece no conteúdo do sonho, nada ficou declarado.” No sonho, ela disse que não tinha nada na despensa, a não ser salmão defumado, quer dizer, ela até poderia dar um jantar com o salmão

defumado. E por que não o faria com salmão defumado, uma vez que estava disponível em sua despensa? Freud declina que, por casualidade, ele conhece essa senhora que é a amiga da paciente, e que essa senhora se priva de salmão tanto quanto sua paciente se priva de caviar. Então, tratava-se de uma senhora que gostava de comer salmão e não o fazia, assim como sua paciente gostava de caviar e pedia para o marido que não lhe oferecesse caviar.

Freud, seguindo em seu minucioso trabalho, admite outra interpretação para o mesmo sonho, entrando nas questões da sobredeterminação. Lembra-nos que, se averiguarmos bem, simultaneamente aos sonhos de recusa de desejo, a paciente se empenhava em buscar para si um desejo recusado na realidade. Entretanto, ela sonha que é para a amiga que não se cumpre o

desejo, porém nesse lugar, ela sonha, também, que é para ela que não se cumpre o desejo, sob a representação de não conseguir dar o jantar. Mas, Freud, não se detém e vai mais adiante, ressaltando que a amiga tem um desejo que não se cumpre; e sua paciente, no sonho, estabelece um desejo que também não se cumpria. Ele, então, introduz a questão da identificação, separando-a em dois pontos: a imitação, que se desencadeia a partir de um processo de identificação, e o ato psíquico que está em marcha, ou seja, a estrutura está em marcha através da imitação, que diz respeito a uma forma de apropriação inerente à histeria. E, no caso do sonho, o ponto em comum existente entre a mulher do açougueiro e sua amiga; nesse momento, conforme aponta Freud, é a suspensão de um voto, ou seja, a realização do desejo insatisfeito através da representação do salmão defumado e do caviar.

O que há em comum entre elas, ou seja, o ponto de identificação entre essas mulheres, a partir da construção da analisante, é um voto insatisfeito, e o comparecimento, no sonho, do “desejo insatisfeito” se dá pelo representante da representação deste, que, respeitando a consideração à figurabilidade – conforme Freud, é a solução encontrada para que um pensamento abstrato encontre uma representação possível na elaboração onírica –, se representa sob a forma imagética da amiga.

Então, nesse sonho, a Bela açougueira constrói um voto que não se realiza. Freud o denomina de sintoma, isto é, uma manifestação da identificação da paciente em relação à sua amiga, constituindo o que ele chamará de formação de uma comunidade, e que se manifesta, ou melhor, que só pode se construir por meio de um traço, o traço da identificação. A comunidade ou essa forma de solidariedade na histeria, essa solidariedade com o outro, que origina a imitação ou a reprodução dos sintomas, diz respeito à identificação pela via da insatisfação. Há uma comunidade, e, justamente, é a construção dessa comunidade que se dá em uma estrutura histérica. Para que haja uma identificação é necessária uma identificação sexual, mas não precisa haver uma relação sexual, diz Freud, basta que se pense nas relações sexuais sem necessidade de que estas sejam reais. Basta que a mulher do açougueiro tenha ciúmes da outra com relação a seu marido, ou que tivesse detectado, de alguma forma, o interesse dele por essa amiga, para que ali se estabelecesse a representação da relação sexual, e que ali, então, se instale a comunidade. Freud nos diz: “Os senhores poderão me objetar que esta é a imitação histérica comum a todos os sintomas, que seria algo da ordem de uma reprodução.” E continua: “Na histeria, a identificação é usada com a máxima freqüência para expressar uma comunidade.”

Assim, o núcleo da identificação histérica se encaminharia para a imitação daquele ou daquela em quem é detectado um desejo insatisfeito, e mesmo que a escolha se dê a partir de uma contingência, o escolhido traz em si um traço, tal como um codicilo, que é a ponta da insatisfação.

No caso em questão, através da identificação se criou a representação do desejo de desejo insatisfeito na realidade, equivalente à identificação histérica.

Temos, então, o salmão defumado que é o prato predileto da amiga e a analisante poderia lho oferecer, já que dispunha apenas desse em sua despensa. Mas o que se apresenta é um dizer, o dito de que não pode dar o jantar, recusando, dessa maneira, à amiga, o salmão defumado. Contudo, por que Freud continua postulando que o sonho é uma realização de desejo, justamente pela não-realização do desejado, já que pelo outro viés ela realizou o pretenso desejo não dando de comer para a amiga?

Após Freud ter interpretado o sonho como o cumprimento desse desejo, no dia seguinte a Bela açougueira relata um novo sonho, que é precisamente o sonho seguinte à interpretação, no qual ela viajava com sua sogra para compartilhar um veraneio no campo. A paciente volta novamente ao ponto: “O senhor me disse que o sonho era um cumprimento de desejo, mas esse novamente não é um cumprimento de desejo [isso depois de tudo que Freud já tinha interpretado], pois o senhor sabe que me oponho muito a passar o veraneio com a minha sogra”, e principalmente porque, nos últimos dias, ela havia conseguido uma casa de veraneio situada bastante distante da casa onde a sogra iria veranear. Então, como é que no sonho ela aparece viajando com a sogra? Freud haveria errado novamente? A paciente reitera sua acusação de que a teoria freudiana não serve para seu caso. Pelo que tudo indica, a paciente estava se debatendo com a afirmação de que o sonho é uma realização de desejo, formulação essa de seu analista, ao tomá-la como um enunciado afirmativo. Estaria ela se debatendo para que ali não houvesse resposta, não houvesse comprovação, que houvesse castração em seu analista?

Os sonhos produzidos e a repetição do enunciado de que Freud não estaria certo dizem respeito ao próprio desdobramento da estrutura, que se dá na tentativa de manutenção da insatisfação como significante de uma falta, propondo a Freud que este também estaria organizado em torno de um desconhecimento, de um não-saber. E essa questão que está em jogo no caso da Bela açougueira encontra seu encaminhamento na formulação de Freud a respeito de seu não saber sobre o desejo feminino: O que quer a mulher? Pergunta que fica sem resposta.

Na Bela açougueira, o não-saber, está sob a forma da insatisfação e também na forma da denúncia que faz de Freud, ou seja, de que ele não sabe. A denúncia, na histeria, é uma das formas de sintoma, e por aí podemos pensar o porquê de Freud ter postulado que o desejo insatisfeito, nesse caso, era um sintoma, na medida em que, ao mesmo tempo em que mostra a castração, a encobre.

Nesse ponto, é possível introduzir a indagação a respeito da inscrição do desejo de desejo insatisfeito, como um fato de estrutura, na neurose, que é justamente o segundo ponto que proponho examinar. Em seu texto, “A direção do tratamento”, ao se referir à posição desse homem, Lacan levanta a lebre se esse marido, tão provedor e tão satisfeito da vida, tem em si algo do desejo que lhe escapa, que precisa escapar independente de sua estrutura, e que sua esposa realmente detecta nele um certo interesse por sua amiga, ainda que esta não o interesse. E, Lacan vai além ao dizer que talvez, a Bela açougueira tenha detectado algo do interesse de seu marido pela amiga, mas como algo que escapa a ele, e que, contudo, comparece, como uma inscrição de falta, na medida em que este se dizia todo satisfeito. Algo que lhe escapa também pela impossibilidade de estar totalmente satisfeito, quer dizer, ele também poderia estar em busca de algo que ele diz que não o satisfaz, ele também poderia estar em busca dessa outra mulher, justamente por ser uma mulher que, a princípio, não o satisfaz. Essas são as redes e os entremeios da questão.

Mas, se a insatisfação em si é um fato da estrutura neurótica, então qual seria a peculiaridade na histeria? Talvez a essa mulher pudesse ser atribuída uma expressão bem complicada: “Ela tem tudo, o marido ou o pai lhe dão tudo, tem tudo o que quer.” Mesmo ela podendo “ter tudo” (que no caso está representado pelo caviar), ela precisava construir essa insatisfação, e a constrói ao manter em suspenso a possibilidade de ter o caviar, assim como

também ocorre na construção do sonho endereçado a Freud.

Que efeito teria lhe provocado o enunciado freudiano, ou seja, o enunciado de seu analista, de que “o sonho é uma realização de desejo?” A interpretação sob a forma de uma denúncia do desejo correria o risco de provocar a afânise do mesmo?

 Freud conclui que ela não estava insatisfeita na realidade; logo, precisava construir o sonho da insatisfação. Era preciso um desejo que não a realizasse, e ela o constrói no seio da relação de transferência quando se contrapõe à postulação de Freud de que o sonho é a realização do desejo, ao lhe endereçar, através do trabalho do sonho, a enunciação de que existe um ‘sonho’, um voto, que não se realiza, que existe um desejo que não se realiza ou que não é para se realizar.

Pensando na insatisfação como um fato de estrutura, podemos nos remeter ao Projeto, no qual Freud afirma que, sobre a Coisa, somente podemos saber por meio de seus predicados; contudo, estes, como afirma Freud, estão perdidos, restando apenas seus representantes. Na medida em que há insatisfação, está rompida a identidade Coisa/predicado, e pode se instalar o processo do pensamento.

Em seu seminário Pour introduire à la psychanalyse aujourd’hui, Charles Melman propõe que Freud sempre se adiantou, testemunhando sem cessar que é sempre possível a uma mulher, se ela tem coragem, apesar das dificuldades morais ou culturais de seu tempo, sustentar seus desejos, escapar da doença. Mas, então, podemos perguntar, por que faz parte da estrutura, na histeria, a sustentação de um desejo que deve ficar insatisfeito? Segue Melman dizendo que a menina busca ficar insatisfeita assim como o menino, ela quer uma insatisfação fundadora, não uma satisfação aleatória, acidental, historicamente dependente. O que ela quer é ser como ele, castrada e não mutilada.

Propomos levar mais longe essa postulação de Melman e concluir que a insatisfação é um fato de estrutura na neurose visto ser uma forma de inscrição da castração, e que a mutilação, por meio do sintoma, seria a recusa da castração, ou seja, pela impossibilidade da falta (do não-saber), mantendo-se, assim, na perda, o que não seria então um fato psíquico restrito á histeria.

 

Conceição de Fátima Beltrão Fleig

(Psicanalista, Association lacanienne internationale,

Escola de Estudos Psicanalíticos, Rio Grande do Sul, Brasil)